"HOMENS INVISÍVEIS" (2) Um trecho.






Na publicação anterior, reproduzimos passagens nas quais o psicólogo social Fernando Braga da Costa contou aspectos de sua experiência como gari na Cidade Universitária. No trecho a seguir o autor demonstra cientificamente as razões, condicionantes e fundamentos a dar legitimidade ao estado de sujeição a que estão atados os trabalhadores manuais não qualificados em ao fenômeno sociológico da da humilhação social, que subtitula o livro "Homens Invisíveis". Vamos lá:


"O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA PRECIPITOU circunstâncias nas quais lugares sociais específicos cristalizaram-se. Tais lugares convencionam as ações possíveis para seus atores; em geral, a partir dessas posições, uns ordenam e outros executam. A consideração aturada desses desdobramentos históricos, a exigir inclusive documentos e pesquisa crítica, é fundamental, mas, na consciência que temos sobre a realidade, pode estar ausente. A compreensão de mundo torna-se lacunar e invertida. Lacunar: deixa de considerar processos históricos mediadores através dos quais a realidade foi assim construída. Invertida: ao apagar tais processos, não pode considerar a realidade efetiva como condição a partir da qual a consciência é formada; dessa maneira, passa a conceber de maneira abstrata e arbitrária a realidade, o sentido das coisas todas.
A divisão entre homens que servem e homens que são servidos parece implicar a existência de dois mundos humanos diferentes. Tal cisão - representada em circunstâncias socioeconômicas que a ostentam materialmente - tem origem em processo de longa duração e que ocasionou a separação entre trabalho braçal e trabalho intelectual.
Entre a concreção da realidade e as interpretações daí derivadas existem processos complexos. Aparentemente, nesse caminho entre a percepção e o pensamento - e entre a ação e o pensamento - algo se perdeu. Em termos marxistas, o campo está aberto para aquilo que se denomina ideologia: instrumento de dominação de classe no qual idéias autonomizadas, desligadas de qualquer efetivo recurso à história, ocultam as divisões sociais, a exploração e a opressão. A ideologia tem o poder de transformar idéias particulares da classe dominante em idéias universais.
A divisão social do trabalho estabelece a aparente autonomia do trabalho do pensamento sobre o trabalho material. Tal autonomia, que é somente aparente, vem apresentar-se à consciência dos homens como autonomia dos produtores do trabalho intelectual, que, por sua vez, apresenta-se falsamente como movimento autônomo dos produtos desse trabalho: as idéias.
Para Marx, a consciência nada mais é do que a consciência informada pelo mundo: consciência ingênua informada por aparências, consciência crítica informada por história, informada pela complexa gênese dessas aparências. O homem pensa o mundo a partir de suas relações efetivas nesse mesmo mundo. Em regime de ideologia, passa-se a imaginar que o homem possui uma consciência autônoma em face da realidade, portanto, o pensamento dispondo o que quiser sobre as ações humanas e não mais as ações, de todos e de cada um, despertando e incrementando as idéias a respeito de mundo. É como se as idéias controlassem extrinsecamente - e de cima - a realidade concreta da práxis humana.
A ideologia configura-se, então, como abstração e inversão da realidade: estrutura-se no campo do aparecer social, isto é, na maneira como os movimentos histórico-sociais apresentam-se imediatamente à consciência dos homens. A base real da ideologia, sendo o aparecer social, não ultrapassa a aparência. Superá-Ia depende da investigação da realidade concreta, a realidade como resultado temporal e sobredeterminado de muitas condições e contradições veladas, a realidade concreta enquanto condição imprescindível de engendramento de idéias plausíveis e reveladoras.
A ideologia interessa à classe dominante. Através dela, a realidade da dominação e exploração não pode ser compreendida como violência; assim sendo, a dominação e a exploração podem adquirir legitimidade. O fato de o trabalhador não recusar a segregação de funções, a baixa remuneração, os serviços degradantes, deve-se, sobretudo, à nefasta informação da ideologia; informações que cancelam verdadeiros motivos históricos e forjam motivos apaziguadores pelos quais uma classe inteira de homens está a alimentar servilmente uma outra.
A ideologia compõe uma cadeia de pensamentos e justificativas que, em termos sociais, amortece a violência. A ideologia amortece o entendimento da experiência de invisibilidade pública como de uma experiência tremendamente violenta. ‘A gente tem que saber qual é o nosso lugar.’ ‘Patrão serve pra mandar mesmo.’ ‘Peão que conversa não quer trabaiá.’
A ideologia é parte integrante dos movimentos mais ou menos conscientes que diluem o sofrimento da invisibilidade pública. A ideologia configura-se como força social que instaura uma forma de pensar o mundo que se constitui, na verdade, como dispositivo para não o pensar. Para operar de maneira tão maciça, a ideologia, fenômeno histórico-cultural característico das sociedades burguesas, encontra e empenha motivações e processos também psicológicos.
Em psicanálise, o termo racionalização parece ajustar-se bem ao que desejamos descrever. Quando atravessa experiência de intensa densidade afetiva, experiência cujos motivos reais desconhece, um indivíduo pode lançar mão de artifícios defensivos - explicações lógicas ou que se ajustem à moral de seu grupo - a fim de encobrir satisfações e interesses mais ou menos inconscientes atendidos pela experiência em questão. A racionalização impede a percepção profunda dos fatos e sua interpretação mais certeira. Condiciona a consciência a manter-se em um nível de funcionamento o mais superficial possível.
Em ambos os processos, racionalização e ideologia – ou, deveríamos dizer, nesse processo misto, a racionalização ideológica -, o impacto de uma experiência, o impacto de uma realidade efetiva - intersubjetiva e interna - parece enfraquecido. A racionalização ideológica abranda a força do que, sem freios e livre, seria uma angústia. A racionalização ideológica pode adormecer nosso ímpeto por buscar as entranhas de um fato social e psicossocial. O processo opera como abafador e afrouxador de tensão.
Racionalizações ideológicas abrandam, abafam, tornam frouxas a realidade e a experiência do antagonismo de classes. A energia psíquica aí empregada é de grande monta, interferindo certamente na economia de nossas trocas simbólicas, na economia de nossos encontros e desencontros com o outro. Os sujeitos envolvidos em acontecimentos de invisibilidade pública, o cego e o apagado, não podem relaxar: o cego trabalha para prover sua cegueira, o apagado, para manter-se à sombra. A luz que esclareceria desencontros humanos esmorece. Um encontro é desviado de seu curso natural para a encenação de um desencontro vivido com neutralidade ou indiferença, com soberba ou humilhação..
A invisibilidade pública é uma construção psíquica e social.
Nessas circunstâncias, muita violência e verdade amortecidas contam como ingredientes que impedem a compreensão da invisibilidade pública como signo de uma luta social, uma luta de classes. A invisibilidade pública, dessa maneira, não aparece como sintoma social, cristalização histórica de um desencontro, mas pode apresentar-se à consciência como fato natural."



ILUSTRAÇÃO: Garis no mundo do faz de conta.

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